O jazz e o Brasil de Darcy Ribeiro: matriz africana
Mais e Mais

O jazz e o Brasil de Darcy Ribeiro: matriz africana



Em Ilha de Vera Cruz, os negros vindos para trabalhar como escravos eram provenientes, em sua maioria, da costa ocidental africana. Darcy expõe que foram trazidos pelos portugueses três grupos distintos: os das culturas sudanesas (yorubá, dahomey e fanti-ashanti), das culturas islamizadas vindas da região da Nigéria (peuhl, mandinga e haussa), e os das tribos Bantu, que se localizavam na área entre Angola (costa oeste) e Moçambique (costa leste) (RIBEIRO, 2006).

Apesar de vindos de diferentes regiões do continente africano, ambas etnias possuíam a vontade de se comunicarem entre si, fato que impulsionou a difusão da língua portuguesa. Este é um exemplo de assimilação e aprendizado que esses diversos povos tiveram que passar para formar uma coesão, e conseqüentemente incluir suas peculiaridades ao português do Brasil.

A primeira tarefa cultural do negro brasileiro foi a de aprender a falar o português que ouvia nos berros do capataz. Teve de fazê-lo para comunicar-se com seus companheiros de desterro, oriundos de diferentes povos. Fazendo-o, se reumanizou, começando a sair da condição de bem semovente, mero animal ou força energética para o trabalho. Conseguindo miraculosamente dominar a nova língua, não só a refez, emprestando singularidade ao português do Brasil, mas também possibilitou sua difusão por todo o território, uma vez que nas outras áreas se falava principalmente a língua dos índios, o tupi-guarani (idem, 2006, p. 202).

Esta matriz também teve de se adaptar à vida urbana, tanto em Nova Orleans, como nas cidades brasileiras. Aqui no Brasil, o negro rural foi transladado às favelas, onde não poderia plantar. Lá, segundo Darcy Ribeiro já se encontravam negros de antiga extração nelas instalados, que já haviam construído uma cultura própria, na qual se expressavam com alto grau de criatividade. Tal cultura vista nas favelas, é para o antropólogo “feita de retalhos, do que o africano guardara no peito nos longos anos de escravidão, como sentimentos, música, ritmos, sabores e religiosidade”(idem, 2006).

As manifestações produzidas, tanto no norte da América, como no sul do continente, traziam consigo marcas e raízes culturais vindas da África. Características que foram fundidas a elementos e tradições diferentes, muitas das quais vindas de seus opressores europeus. No campo musical, o jazz é um exemplo para destacar tais assimilações.

Quando entrou finalmente em contato com os instrumentos europeus – geralmente aqueles das brass bands – o negro abordou a sua técnica de um modo inteiramente espontâneo e original. Seu repertório básico era formado pelas marchas que ouvia nas ruas e pelo blues instrumental, em que tentava imitar a voz humana com suas cornetas e seus trombones (MUGGIATI, 1999, p.31).

O exemplo citado denota o poder de adaptação artística dos negros em meio às diversidades. Eles, que trabalhavam em plantações de tabaco e arroz no sul dos Estados Unidos, acolheram instrumentos musicais até então tocados por europeus e norte-americanos brancos. Em sua posse o negro trouxe sua singularidade a instrumentos como o trompete, trombone, piano, e mais tarde ao saxofone, tocados antes somente na música clássica e em bandas marciais. Com isso, o chamado som “puro” da música clássica perdeu espaço com esses trabalhadores que trouxeram novos horizontes, conforme explica o historiador inglês Eric Hobsbawm:

Mas geralmente as cores do jazz surgem da técnica peculiar e não convencional pela qual os instrumentos são tocados, e que foi desenvolvida porque os primeiros músicos eram totalmente autodidatas. Por esse motivo eles fugiram às convenções há muito tempo sedimentadas pela música erudita européia no que se refere à maneira “correta” de utilizar instrumentos ou vozes educadas. Esse padrão convencional europeu tinha sido estabelecido com o objetivo de produzir um tom instrumental puro, claro e preciso, e um tom vocal o mais próximo possível de um tipo especial de instrumento (HOBSBAWM, 1989, p. 50).

Através desse processo, viu-se, no jazz, que não há tons ilegítimos, visto que tal estilo nasceu de experimentações. Além disso, percebeu-se que objetos e ferramentas, no caso, instrumentos musicais, poderiam ser usados de diferentes maneiras consoante as diversas finalidades. O mesmo aconteceu no Brasil, no que toca à religião, cujo sincretismo entre catolicismo e religiões afro-brasileiras resultou no surgimento da umbanda. Ao invés de instrumentos musicais, os santos católicos – com suas imagens e esculturas - ganharam novos significados.

A matriz africana, com as características citadas, mostra-se como um exemplo de aculturação e assimilação neste novo mundo, conhecido como América, que tem o Brasil e o jazz como ícones.

Referências bibliográficas:

HOBSBAWM, Eric. História Social do Jazz. Trad. Angela Noronha. São Paulo: Paz e Terra, 1989.
MUGGIATI, Robert. O que é jazz?. São Paulo: Brasiliense, 1999.
RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.




loading...

- Mídia Radical, Processo, Representação E Música
A obra “Mídia Radical: rebeldia nas comunicações e movimentos sociais” de John Downing apresenta em suas páginas um panorama de atitudes comunicacionais de diferentes partes do planeta que visam representar grupos e minorias. Esses, cujo espaço...

- O Jazz E O Brasil De Darcy Ribeiro: Considerações
O jazz e o Brasil, mostrado e explicado por Darcy Ribeiro, possuem a marca de terem nascido pelo estranhamento, aproximação, imposição, alteridade e criatividade. Apesar de um ser uma nação, e o outro, um gênero musical, ambos denotam que esta...

- O Jazz E O Brasil De Darcy Ribeiro: Matriz Européia
A matriz européia, a qual eu me refiro neste artigo, exerceu uma maior influência em nosso país pela lusitanidade, termo usado por Darcy Ribeiro, que na obra O Povo Brasileiro destaca o “enfrentamento dos mundos” entre os portugueses e os indígenas....

- O Jazz E O Brasil De Darcy Ribeiro: Introdução
Na obra O Povo Brasileiro, o antropólogo, ensaísta, romancista e político Darcy Ribeiro desmembra a nação brasileira constituída de três grandes matrizes: a africana, européia e indígena, nessa última com especial destaque para os índios tupis....

- Improvisação Difícil: Nascimento E Aculturação
Mas por ora, esqueçamos o Brasil, e vamos para o norte do continente americano, onde está localizada a cidade de Nova Orleans, no sul dos Estados Unidos. Com quase 500.000 habitantes, a cidade é a maior do estado da Luisiana que se encontra entre...



Mais e Mais








.